quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sem pedaços

Andava descrente de tudo. Andava principalmente descrente de mim. A chuva não, a chuva era real no meu rosto. A cratera gigantesca aqui dentro era real. Esse lado realista apenas servia como cabide para todas as partes que doíam em mim. É que quando acordei de repente eu estava numa ilha. Numa ilha longe. E não tinham deixado cair por lá, por entre a selva, nenhum mapa, nenhuma pista. Aí eu já comecei a não acreditar mesmo em nada. Ilha é uma coisa tão deserta que qualquer deserto que se orgulha de seu imenso vazio se torna arrogante. Vazio não é pra qualquer um e eu estava descrente. Era ruim andar em círculos. Procurar uma saída nem sempre significa que se poderá achar. Eu tinha deixado de procurar. Tinham me deixado pra mim. Tive uma obrigação injusta de me achar. Para quedas assim somente o chão. Ninguém cai na água, numa piscina de bolas de isopor ou num colchão de ar. Quedas foram feitas pra arrebentar o que parecia forte ou quase inquebrável. Deu certo. Quebrou-se com total eficiência numa queda feita pra quebrar. Mas quem consegue colar pedaços de si mesmo? Sem mãos, sem dentes, sem pernas, sem cotovelos, sem restar nada que sirva de apoio? Aos poucos o pouco que ficou, entre não dormir e cair de sono, entre pesadelos e branco total, foi  se reorganizando por exclusiva sobrevivência. Vendo-me os pedaços pude me conhecer parte a parte desse corpo que não via a um tempo. A quanto tempo! Nem me lembrava mais. E tive que acreditar. Sair da descrença. Eu sabia levantar o braço e apontar pra lá, onde eu queria estar. Havia coisa boa pra mim. Daqui mesmo eu me via lá, antes de chegar. Mesmo sem saber chegar. Eu tanto quis que apontei, mirei a vista e fui. Não houve outra, cheguei lá. Meio sem saber pisar no chão. Meio sem saber pra onde olhar, mas entendendo que cada lugar tem sua particularidade. O melhor da particularidade que encontrei foi te conhecer. Houve uma certeza quase inquebrável que tava apontando na sua direção e não a esmo. Porque ao se recuperar de uma queda em que se parte em pedaços a gente passa a compreender cada articulação que dói. Cada parte que dói fala alto e nos previne dos perigos de novas contusões. Da ponta do dedo indicador ao calcanhar. [Ressaltando que eu não tinha conhecimento que aquilo era um precipício.] Acontece que apontei pra lá. Acima do precipício. Subia descrente. Completamente. O melhor momento pra mim foi quando lentamente começou a escoar bem pra lá, o líquido sujo da dor que me encharcava toda a roupa e eu pude secar os cabelos com sua brisa. Ninguém melhor que eu pra entender o momento em que apontei, fui e te encontrei. É como eu te disse, aquela tarde valeu tanto quanto vale se ver gostando de alguém. [Aquele beijo eu ainda nem pude escrever.] Vale o tempo de espera. Vale o branco na vista. Vale tanto quanto o que vem de bom pela frente. Vale acreditar que embora estivesse descrente é inevitável não te olhar.

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