sexta-feira, 11 de julho de 2014
Não deve ser tarde
Eu acho que eu engoli a vida. Ainda não sei bem dizer o que tá acontecendo. Eu acho que ta desembaçando. A chuva se aplicou como creme para o corpo todo e foi ficando por aqui. Umedecendo. Engoli uma certa maresia a poucos dias e deu uma melhorada aqui na pele. Tem um arranha céu que eu conheço e subi até a cobertura e vi tudo. Dá pra ver tudo. É uma visão que só se tem do alto. Não da pra dizer que é uma bela visão por que a gente entalhou na pedra como seria a beleza e aí não sai mais da pedra. Pouco importa. Importa é ter um prédio que possa subir. Não se trata de alta ajuda. Quando se está lá na cobertura do prédio e o tempo acaba, é preciso descer e aí começa a vida, engolida ou prestes a ser engolida. Então a magia não está lá, mas quando desce. Não se pode tocar em nada quando está lá. Não se tem nada estando lá. Nada é nosso. Nem estando lá e nem aqui. Outro dia passou por aqui uma tempestade de areia. Ardiam os olhos. Deixou tudo empoeirado. Areiado. Não tinha outra alternativa a não ser esperar essa tempestade de areia passar. Fiz de tudo pra não engolir. Mas ela entranha nos cabelos, por dentro da roupa. Pelos ouvidos e pelas narinas. Enche os bolsos e as bolsas de areia. As roupas do varal passaram a ter o mesmo visual. A mesma cor e a mesma textura. Não via a hora dessa areia toda dar uma trégua e como nada é nosso, nem éramos da areia e nem a areia nos tinha. Foi recolhida pelo vento. Aí ela passou a ser do vento e foi embora com ela. Eu quero poder olhar pra o céu. Sempre quis poder olhar pra o céu. É uma decisão fácil, simples, eficiente e moderna, pois você pode olhar pra o céu a hora que quiser, sem hora marcada e sem regras. Praticamente ninguém conhece essa falta de regra. Esse dia houve um encontro. Encontro só se dá assim encontrando e não buscando. Encontro é levantar a vista e ter outra vista que te avista. Foi quase exatamente assim. Isso foi esse dia mas somente à partir de agora estou anotando. A gente custa a acreditar no sabor das coisas. A gente não engole e quando engole é rápido demais e deixa de sentir o gosto. Nem tudo vai ser amargo e o encontro, por exemplo, pode te levar ao cinema. Há um tempo que não ia ao cinema. O fato é que não faz parte da administração do cinema destrui-lo algum dia e vamos contando com a eternidade do cinema. Nem ele mesmo vai ficar pra sempre. Eu preciso voltar lá antes que ele não exista mais. Não estou falando de correr contra o tempo. Não estou falando em ter pressa. Falo daquela dinâmica que a gente perde com o passar dos anos. A gente queria e fazia. A gente sentia e vivia. Estávamos vivos por que não tinham começado a nos deter. Não deve ser tarde pra ir no cinema, pra experimentar um novo jantar, pra conhecer tudo outra vez. Não está tarde pra começar tudo outra vez. Cedo é acreditar que não há mais nada a fazer senão achar que é tarde demais. E final de tarde é quando no céu se encontra mais opções de acreditar que não é tarde.
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